No meio jurídico, a ideia de carreira é central e inerente à própria identidade profissional. Os agentes públicos, como delegados, procuradores, defensores públicos, juízes e promotores, organizam-se em torno de uma trajetória institucional bem definida, marcada por promoções, estabilidade e prestígio social.
No âmbito privado, os advogados também perseguem reconhecimento e conforto material, muitas vezes medindo sua prosperidade não apenas pelos resultados alcançados nos tribunais, mas também pelo lugar que ocupam na estrutura social. Ser advogado de fulano, de tal instituição ou empresa é um trunfo considerável. Veste o patrono.
A ascensão na carreira (seja no sentido de cargos em ascensão, seja no de êxitos acumulados), tanto na esfera pública quanto na privada, funciona como um projeto biográfico — um plano que promete segurança e pertencimento em um campo onde a razão, a ordem e o formalismo são pilares fundamentais.
Mas a realidade está aí para destruir essas pretensões e esfarelar essas certezas. E, por paradoxal que pareça, a ficção ajuda a mostrar a debilidade de aspirações que tais. Às vezes, a vida imita a arte, mas o mais frequente é a arte moer as idealizações antes que a realidade o faça.
A Morte de Ivan Ilitch é uma novela publicada em 1886 por Liev Tolstói. Autor de clássicos como Guerra e Paz (1869) e Anna Karenina (1877), ele já era uma figura consagrada quando escreveu essa obra, que se destaca por sua profundidade psicológica e por seu olhar crítico sobre a sociedade russa do século XIX. Esse texto é considerado uma das mais importantes reflexões literárias sobre a finitude e o sentido da vida. Explora o confronto entre a morte e o vazio existencial gerado por uma história pessoal dedicada às convenções sociais e ao sucesso profissional.
Ivan Ilitch morreu aos 45 anos. Juiz respeitado, homem metódico e socialmente bem-sucedido, ele acreditava ter seguido o caminho correto para uma trajetória estável e segura: ascensão na carreira, casamento conveniente, amizades estratégicas. Era um burocrata, alguém que entendia o funcionamento da máquina social e se ajustava a ela com precisão cirúrgica. No entanto, o que parecia um plano sólido revelou-se frágil diante da doença e da morte.
A narrativa conduzida por um narrador onisciente não deixa espaço para ambiguidades. Desde o início, sabe-se que ele está condenado. Aliás, ele morre no título. Seus colegas de tribunal, ao saberem de seu falecimento, reagiram de modo egoísta e autorreferente. Seu óbito era mais um evento administrativo a ser processado na engrenagem burocrática:
“De modo que, ao ouvirem a notícia da morte de Ivan Ilitch, o primeiro pensamento de cada um dos que estavam reunidos no gabinete teve por objeto a influência que essa morte poderia ter sobre as transferências e promoções tanto dos próprios juízes como dos seus conhecidos.”
Cruel, mas verossímil.
Ivan Ilitch viveu de acordo com as convenções de sua classe:
“Na faculdade, ele já era aquilo que seria no decorrer de toda a existência: um homem capaz, alegre, bonachão, comunicativo, mas um severo cumpridor daquilo que considerava seu dever; e considerava como seu dever tudo aquilo que consideravam como tal as pessoas mais altamente colocadas.”
Sua baliza era o julgamento alheio. Casou-se porque era conveniente, não porque amava sua esposa:
“Ivan Ilitch casou-se de acordo com os seus próprios cálculos: conseguindo tal esposa, fazia o que era de seu próprio agrado e, ao mesmo tempo, executava aquilo que as pessoas mais altamente colocadas consideravam correto.”
O casamento, assim como sua profissão, foi uma construção cuidadosamente organizada para funcionar sem atritos — uma esterilização existencial, onde o desconforto era eliminado por meio do formalismo.
O direito que Ivan Ilitch aplicava era igualmente asséptico. Ele julgava os outros com frieza e distanciamento, com indiferença. Parecia ser uma boa fórmula.
Entrementes, tudo começou a ruir com a chegada da doença, possivelmente advinda de um acidente doméstico mal curado. O diagnóstico foi vago, o prognóstico nebuloso. Ele percebeu que o plano que traçou para sua existência — casamento, carreira, status — não poderia protegê-lo. A estabilidade cuidadosamente construída revelou-se uma ilusão. Sentiu-se condenado.
Padecia fisicamente com a moléstia indecifrada, mas foi a dor moral que realmente o destruiu. A percepção de que sua jornada foi um fracasso o consumia mais do que a enfermidade. Ele percebe que o médico afamado com quem ele foi se consultar agia com ele com a mesma apatia ou ar de superioridade com que ele se comportava no fórum:
“Tudo se passou como esperava, isto é, como sempre acontece nessas ocasiões: a espera, um ar importante e artificial, doutoral, que já conhecia, aquele mesmo que ele sabia que tinha no tribunal (…), que sugeria o seguinte: basta que você se submeta a nós, e haveremos de arranjar tudo, sabemos sem nenhuma dúvida como arranjá-lo, temos um padrão único para todas as pessoas. Tudo era exatamente igual ao que sucedia no tribunal. Assim como ele assumia certa expressão para falar com os acusados, o médico famoso também assumia determinada expressão.”
Ele revisou sua existência em um doloroso processo de avaliação. Lembrou da infância, dos primeiros anos de carreira, dos momentos de felicidade simples que foram abandonados em troca da aprovação social e da conformidade. Descobriu que nunca viveu de verdade — apenas seguiu o caminho esperado.
A sordidez das pessoas ao seu redor intensificava essa dor. A esposa e os amigos mantiveram uma postura civilizada, mas Ivan percebia o desprezo velado e o alívio implícito com sua morte iminente. Ele descobriu, tarde demais, que viver para cumprir convenções não é o mesmo que viver de fato:
“Talvez eu não tenha vivido como se deve – acudia-lhe de súbito à mente. – Mas como não, seu eu fiz tudo como é preciso?”
Havia, contudo, uma exceção. Guerássim, o criado simples e humilde, é o único que lhe oferecia um contato humano verdadeiro. Guerássim não julgava, não esperava nada — apenas cuidava dele com compaixão sincera. Tolstói sugere que o verdadeiro consolo não vem da validação pública ou do sucesso profissional, mas da simplicidade e da humanidade de um gesto autêntico.
“Os seus sofrimentos morais consistiam em que, aquela noite, ao olhar o rosto sonolento, bonachão, de maçãs salientes, de Guerássim, acudiu-lhe de súbito à mente: E o que será se realmente toda a minha vida, a minha vida consciente, tiver sido ‘outra coisa’?”.
A trajetória de Ivan Ilitch reflete a fragilidade de uma vida centrada apenas na carreira e no prestígio social. Tolstói expõe a ilusão dessa promessa. Seu personagem acreditava que o triunfo profissional lhe daria controle sobre a própria existência, mas descobre, diante da morte, que construiu uma história pessoal oca, sustentada por cerimoniais e aparências.
Hoje, em uma sociedade líquida, a busca por validação nesse universo mediado pela tecnologia, quando desprovida de autorreflexão, de moderação e consciência, tende a intensificar o narcisismo e o individualismo, dificultando o reconhecimento de vínculos afetivos genuínos. A vida de Ivan Ilitch – tanto quanto sua morte – talvez tenha algo a advertir sobre os perigos existenciais contemporâneos.